ActionAid organiza Tribunal Popular por uma Transição Justa durante a COP30 para denunciar impactos e violências da transição energética
Como parte da programação da Cúpula dos Povos durante a COP30, na Universidade Federal do Pará (UFPA) em Belém, a ActionAid organizou o Tribunal Popular por uma Transição Justa. A sessão reuniu denunciantes de diversos movimentos sociais para apresentar, com testemunhos e provas, violações de direitos e manifestações estruturais de racismo ambiental.
Diante de uma sala lotada, o júri, composto por três representantes, foi colocado simbolicamente “no banco dos réus”, como encarnação do Estado brasileiro e das instituições que têm falhado em garantir justiça climática. O resultado do tribunal será transformado em um relatório público, voltado à pressão política e ao fortalecimento da visibilidade de casos que confrontam diretamente o direito ao território e, consequentemente, à vida.
O Tribunal foi mediado pela advogada popular, Suzany Brasil da Terra de Direitos, e revelou como movimentos e lideranças vivenciam diariamente a recusa do Estado e de grandes empresas em promover reparações históricas, enquanto enfrentam ameaças e criminalização por defender seus territórios. As denunciantes, todas mulheres, foram representavam o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), os movimentos quilombolas com representatividade do Quilombo Baião (Tocantins), o Movimento dos Pescadores e das Pescadoras Artesanais, o Eco Maretório, o Movimento dos Rios e Igarapés (MRI) e a Articulação Povos de Luta (ARPOLU). Apesar das peculiaridades de cada território, todas as denúncias tinham um ponto em comum: a invisibilidade dos territórios e de suas existências alimenta violências sistêmicas que violam direitos fundamentais — inclusive o direito de permanecer na própria terra.
Assassinatos, devastação e racismo ambiental
“Nós somos guardiãs da floresta e precisamos de proteção. Queremos os babaçus em pé. As nossas companheiras saíram para trabalhar, em busca de alimentos para a família e não voltaram mais, foram assassinadas. Por enquanto a gente tá sem saber de nada.”, denunciou Maria de Souza, representante do MIQCB presente na mesa, que já se preocupa com os impactos iminentes da hidrovia Tocantins - Araguaia para as quebradoras de coco, os pescadores, ribeirinhos e extrativistas.
Do Quilombo Baião (Tocantins), Maryellen Crisóstomo, Consultora em Justiça Econômica e Direito das Mulheres da ActionAid, destacou que por não haver consulta e, consequentemente, consentimento, o que acontece nas comunidades não é um acidente, mas resultado de um projeto.
“Nos últimos 8 anos, nós perdemos toda a parte extrativista do nosso território porque o Estado diz que precisa expandir a sua produção. As comunidades não têm mais o que colher, e não é porque subiram a cerca, mas porque cortaram todas as árvores do cerrado. A nossa vivência no território é drasticamente afetada pela pulverização aérea de agrotóxicos e pela ausência de água porque as fazendas destruíram as nascentes e a vegetação. A gente vem tentando fazer denúncias, inclusive na Justiça Federal, e não temos resposta nenhuma. Nos autos do processo somos questionados o tempo inteiro da nossa legitimidade.”
A questão do reconhecimento das existências das pessoas integrantes dessas comunidades e de seus territórios, resulta em um apagamento constante que impacta diretamente em quem age em defesa da natureza. É o que afirma Cláudia Santos, representante do Movimento dos Pescadores e das Pescadoras Artesanais. “Nós e os indígenas somos os últimos a resguardar a natureza. O que a gente tira da terra é o que a gente precisa para sobreviver.”, diz a quilombola que, dentre outras denúncias, acusou como a presença de chumbo em decorrência da atividade das mineradoras na comunidade de Santo Amaro tem resultado em crianças nascendo com deformações, em aumento de doenças correlacionadas à substância e até em amputação de membros de integrantes da comunidade.
“O Estado quer que a pesca artesanal não exista”
Do movimento Eco Maretório, Alanna Carneiro apresentou dados alarmantes sobre os impactos da energia eólica no litoral nordestino. Segundo levantamento realizado pela própria comunidade, 64% das pessoas convivem 24 horas com o barulho das turbinas e 75% relatam piora significativa na saúde desde a chegada dos empreendimentos. Em diversos territórios, aerogeradores foram instalados a menos de 45 metros de escolas e moradias, expondo famílias a um ambiente constante de adoecimento. Alanna descreveu uma realidade marcada pelo infrasom, pelo campo eletromagnético, pela fibra de vidro liberada pelas pás e pela contaminação da água, agravada por derrames de óleo das máquinas. Como consequência, cresce rapidamente o número de casos de sofrimento psíquico, ansiedade, insônia e outras doenças de saúde mental.
Repressão às comunidades, rios adoecidos e impactos pela energia eólica
Representando o Movimento dos Rios e Igarapés (MRI), Cleide Alves e Marina Soares denunciaram a ausência de consulta pública e a presença de repressão sempre que as comunidades tentam impedir novos empreendimentos: “Quando dizemos basta, o Estado responde com repressão. Não existe cidade sustentável com rio adoecido. Nós não somos obstáculos — somos raiz. E como raízes, não arredamos.”
Da Articulação Povos de Luta (ARPOLU), Angeliane Alves, da comunidade pesqueira Vila Nova (CE), alertou para o avanço dos parques eólicos territoriais e offshore, que chegam desacompanhados de consulta prévia com exposição real dos danos: “Para nós, tudo começa com especulação imobiliária. O Estado brasileiro nunca nos reconheceu. É um braço das empresas.”
Ela também denunciou como não há nenhum benefício de retorno à comunidade: “A torre está no nosso quintal e nós não consumimos a energia gerada por ela, que se direciona aos data centers de iniciativa privada. Somos obrigados a deixar nossos corpos e territórios.”
Carla Maria reforçou as violações, citando o caso de uma empresa alemã denunciada pela comunidade: “A transição climática justa que a mídia anuncia não existe para nós. Onde tem torre eólica, tem gente morrendo de arrependimento de ter aceitado.”
Participação do público evidencia tribunal popular
De Pernambuco, Luiza Cavalcante chamou atenção para a nova onda de projetos que reordenam o território brasileiro sem participação social: “É preciso impedir a recolonização das terras brasileiras, especialmente no Nordeste.” Ela clamou que as companheiras insiram a realidade dos povos impactados pelas linhas de transmissão em seus discursos sobre transição energética.
Perspectivas do júri
O júri foi composto por Guillermo Torres (Proyecto de derechos económicos, sociales y culturales, ProDESC/Iniciativa para la Justicia Transnacional - IJT), Francesco Martone (Juiz do Tribunal Internacional pelos Direitos da Natureza) e Tricia Calmon (Superintendente de Apoio e Defesa aos Direitos Humanos no Governo do Estado da Bahia).
Após a escuta atenta às denúncias, o trio reforçou o caráter estrutural da violência. Enquanto Guillermo se surpreendeu com a quantidade de frentes e com o sofrimento causado pelos impactos que não está sendo considerado, Francesco afirmou não existir diferença entre direitos humanos e direitos da natureza nesse contexto. “O sistema extrativista capitalista viola ambos”, concluiu.
Já Tricia ressaltou o impacto sobre a saúde emocional das mulheres, que não só enfrentam a luta política, como também o cuidado doméstico:
“Nós estamos lidando com uma lógica de desenvolvimento que desconsidera a presença de seres humanos nos territórios. Não tem como recuar, é sobre vida. O adoecimento dessas mulheres é parte da violência do modelo energético.”
Ao final, as lideranças anunciaram que irão se reunir coletivamente com seus movimentos para elaborar respostas e encaminhamentos que irão basear o relatório final.
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