Brasil registra queda na insegurança alimentar, mas desigualdades e ameaças persistem
O IBGE divulgou os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – módulo Segurança Alimentar 2024. A nova edição da pesquisa, baseada na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), confirma o que a ONU havia reconhecido há pouco mais de dois meses, de que o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome, registrando avanços na garantia do direito à alimentação.
Trata-se de uma boa notícia. O número de domicílios em algum grau de insegurança alimentar caiu de 27,6% em 2023 para 24,2% em 2024, o que representa cerca de 2,2 milhões de lares a menos enfrentando dificuldade para se alimentar. Ao todo, o país contabiliza agora aproximadamente 18,9 milhões de domicílios em insegurança alimentar. A insegurança alimentar leve passou de 18,2% para 16,4%, a moderada de 5,3% para 4,5%, e a grave — equivalente à fome — de 4,1% para 3,2%.
Avanços impulsionados pela renda e programas sociais
Segundo o economista Francisco Menezes, ex-presidente do Consea e consultor da ActionAid, “os resultados indicam melhorias a serem festejadas, mas também existem ameaças que podem trazer muitas dificuldades, como a inflação de alimentos”.
O especialista lembra que o aumento da renda, impulsionado pela valorização do salário-mínimo e pela redução do desemprego — com taxa de desocupação que caiu para 6,2% no final de 2024 —, teve papel decisivo nos avanços observados. “Combinado com o aumento do poder aquisitivo da população de menor renda, também contribuiu para esses resultados a efetividade de programas sociais e de segurança alimentar. A implementação do Plano Brasil sem Fome melhorou a articulação entre diversos programas, potencializando seus resultados”, destaca Menezes.
Apesar do avanço, o economista ressalta que a inflação de alimentos, que fechou 2024 em 7,7%, ainda é motivo de atenção. “Se a inflação ocorre, ela esvazia os efeitos da melhoria de renda. Mesmo abaixo dos patamares de 2022, o aumento dos preços dos alimentos segue impactando com maior intensidade as famílias mais vulneráveis”, alerta.
Desigualdades regionais e estruturais persistem
As desigualdades regionais e estruturais continuam marcantes. A insegurança alimentar permanece mais elevada nas áreas rurais do que nas urbanas, embora ambas tenham apresentado reduções em relação ao ano anterior. O IBGE mostra que as regiões Norte e Nordeste seguem com os piores índices do país, apesar de também terem registrado pequenas melhoras entre 2023 e 2024.
Para Menezes, essas diferenças revelam causas estruturais de longo prazo, como o acesso desigual à terra e o baixo investimento em agricultura familiar e em comunidades tradicionais.
“A retomada de políticas que beneficiam essas populações, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e o Programa de Cisternas, tem possibilitado melhorias importantes. Mas ainda é preciso fortalecer a agricultura familiar e ampliar o apoio do Estado aos povos e comunidades tradicionais. Os programas sociais, como o Bolsa Família, também têm papel fundamental para atenuar os casos de insegurança alimentar grave e moderada em territórios mais vulneráveis do Norte e do Nordeste”.
O economista destaca ainda a importância de fortalecer o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), “que, a exemplo do SUS, gera uma articulação maior entre União, estados e municípios e pode beneficiar muito o Norte e o Nordeste, por estabelecer prioridades para os territórios mais vulneráveis”.
A face racial e de gênero da fome no Brasil
O levantamento do IBGE também reforça a persistência das desigualdades raciais e de gênero no acesso à alimentação. Entre os domicílios em situação de insegurança alimentar, 59,9% têm mulheres como responsáveis, 54,7% são chefiados por pessoas pardas e 15,7% por pessoas pretas.
Maryellen Crisóstomo, especialista de Justiça Econômica e Direito das Mulheres na ActionAid, pontua:
“É a desigualdade racial, atingindo sobretudo mulheres negras, a cara principal da insegurança alimentar. O Brasil tem avançado no enfrentamento do racismo mais nas leis do que na realidade do dia a dia. Por isso, as melhorias nestes índices ainda são lentas”.
Maryellen também ressalta que, enquanto persistirem essas desigualdades, a fome continuará sendo expressão de uma injustiça histórica. “Podemos afirmar que, enquanto o país não superar suficientemente esta desigualdade, ainda traremos marcas injustificáveis de insegurança alimentar”.
Alertas e desafios para o futuro
A ActionAid faz um chamado à atenção para os desafios que ameaçam a sustentabilidade dos avanços. Francisco Menezes cita duas preocupações principais: a insuficiência orçamentária das políticas sociais, em um contexto de destinações públicas nem sempre transparentes — como parte das emendas parlamentares —, e os impactos cada vez mais frequentes dos eventos climáticos extremos, com efeitos altamente danosos sobre o sistema alimentar. E conclui: “Festejemos os avanços, mas estejamos alertas para que não sejam retomados retrocessos recentemente experimentados.”
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